A C E S S O
Lembrei a senha!

Não tem cadastro?
Cadastre-se grátis!

Notícias

Geral
ARTES PLÁSTICAS

Em entrevista, Roger Mello fala sobre arte do desenho como extensão humana

Geral

Convidado como coordenador de oficinas do Festival Desenho Vivo, o premiado artista gráfico brasiliense fala da importância de democratizar o acesso e o incentivo ao desenho

Arquivo pessoal Roger Mello: o desenho é a possibilidade do pensamento com o traço
Roger Mello: o desenho é a possibilidade do pensamento com o traço

O fato de ter nascido em Brasília não é um detalhe irrelevante na trajetória de Roger Mello. O desenhista e pensador do traço de renome internacional formou muito de suas referências na cidade erguida a partir dos riscos de Lucio Costa e Niemeyer. Artista gráfico e escritor, ilustrou mais de 100 livros e recebeu o prêmio Jabuti nas categorias de literatura infantojuvenil e ilustração, com Meninos do mangue; o prêmio suíço Espace Enfants e foi o primeiro ilustrador brasileiro a ser indicado para a final do Prêmio Hans Christian Andersen em 2010 e 2012, tendo vencido em 2014.

Talento e sensibilidade que compartilha sempre que pode, como fará neste sábado e domingo à frente das oficinas sobre ilustração no Festival Desenho Vivo, que acontece no Centro Cultural Banco do Brasil (CCB) até 1º de agosto. Para ele, palavra e imagem são indivisíveis no livro, estão na origem desse objeto sensorial da cultura, que Jorge Luis Borges disse ser o único que é uma extensão da imaginação. “Todos podem desenhar”, garante Roger. E, nesta entrevista, ele fala sobre o encanto do traço, a relação das crianças com o desenho, os segredos da ilustração e a relação com Brasília, que ele considera não apenas uma cidade, mas um projeto de Brasil.

Como se deu a revelação do desenho para você? De que maneira se acendeu a paixão?
Olha, eu acho que desenho é a palavra de que mais gosto. É a possibilidade de pensamento do traço. Brasília nasce do traço de uma geração que usa muito o desenho, não só para gerar utopia, mas também ficção. Minha mãe guardou muitos desenhos que fiz quando era criança. Sempre percebi o livro como uma unidade de palavra e imagem. Para mim, livro ilustrado é redundância. O Livro dos Mortos ou os códices Maias são um híbrido de palavra e imagem. Isso está na origem do livro.

Como você concebe a ilustração no livro?
Eu vejo a palavra e a imagem como duas coisas indissociáveis. A imagem é um texto também, ela é narrativa. Não se dá tanta importância à imagem quanto à palavra. No entanto, ela é fundamental. A imagem te coloca para viajar em um tapete voador. Dizemos que vivemos em um mundo de imagens de um modo pejorativo. Sem conhecer e sem valorizar, a gente vira vítima da imagem.

E qual a relação das crianças com os desenhos?
Toda criança desenha. Como ilustrador, digo que a maior invenção do homem foi a palavra. Ela permitiu a transmissão da informação em código. É um processo complexo. Todos nós nos tornamos leitores melhores a cada dia. É uma conquista permanente. Enquanto isso, a imagem é dada quase como um fato da natureza. A criança reconhece imediatamente as imagens do pai ou da mãe em uma foto. Você não pede a uma criança muito pequena para que ela escreva. Pede para que ela desenhe.

Você acha que todos podem desenhar ou é um privilégio de alguns iluminados pelo talento gráfico?
Tenho certeza absoluta de que todos podem desenhar. Se você pede a alguém que desenhe, é provável que ela reproduza algo próximo da realidade. Mas desenhar é projetar, como se projeta uma casa. Mal ou bem, você esboça uma planta. É um simulacro. Desenhar é representar algo muito próximo do real. Mas, depois, você pode pedir que ela desenhe uma casa como queria que fosse. O desenho é projeto, tanto que, no espanhol, desenhar é projetar. O traço é um elemento importantíssimo da linguagem.

Você poderia dar um exemplo da importância do traço na linguagem?
O traço está na origem das palavras. A letra A é uma estilização da cabeça de um porco virada para cima. O Sebastião Salgado deu uma definição da fotografia na apresentação de uma exposição dele que eu achei muito boa: “Fotografar é escrever com a luz”. O traço é o oposto da fotografia. O traço escreve com a sombra. A matemática é puro desenho. Poderíamos ter o mundo das imagens em diálogo com o mundo das palavras. Por isso, uma educação das crianças para a imagem é muito importante.

A educação deveria investir na consciência das imagens e na descoberta dos talentos para o desenho?
Eu acho que a educação não pode se sustentar no talento, mas, sim, na expressão visual. Nem todos serão artistas, mas é importante que todos experimentem a linguagem do desenho. Por incrível que pareça, o Brasil ainda é o país da educação. O Brasil tem vários professores que trabalham bem a relação entre palavra e imagem. Levam um quadro para os alunos e pedem que eles façam uma interpretação visual. Rabiscar é o fluxo de consciência no desenho. Bartolomeu Queiroz dizia que se confere tão pouca importância à fantasia, mas tudo que é real foi desenhado por alguém: as casas, os carros, a fábrica. Somos uma sociedade iconofóbica, temos medo das imagens. Temos de investir no desenho como expressão.

Como é o seu processo de criação? Por que você se inspira tanto nas tradições populares, principalmente do Brasil?
A América do Sul tem uma tradição muito forte do desenho narrativo. O homem primitivo do Planalto Central gravava com pigmento nas rochas. Então, você não precisa ir à Serra da Mantiqueira para conhecer esse desenho. Sou admirador fervoroso dos artistas populares, eles têm um desenho muito rico. O desenho de Nino é muito diferente do criado por Noemisa. Mas não me inspiro somente na tradição brasileira. O livro de contos mais antigo é o Pancha Tantra, da Índia, tem histórias de sentido perfeitamente contemporâneo. E tenho também uma relação muito forte com os códices maias. É pura tecnologia. Por outro lado, amo a arte contemporânea. Quero que meu livro seja desta época. O livro é uma máquina do tempo. Pega uma ilustração que os povos árabes fizeram e você encontra iluminuras maravilhosas. Tem uma atemporalidade absolutamente contemporânea.

Além do traço, algumas ilustrações suas utilizam objetos como se fossem obras de arte contemporânea...
Sim, os objetos são muito importantes para mim. Quero escrever ou ilustrar por causa de um personagem. O personagem só aceita o que eu quero impor até certo ponto. A partir dali, ele se emancipa. Mas, às vezes, um tecido ou um objeto são mais importantes do que o personagem. Pode ser uma lâmpada mágica, um fio de novelo que contém o tempo, uma bússola, um tapete mágico. Quando se respeita a criança, sem recorrer a imagens estereotipadas, você respeita o leitor. Quem lê é tão criador quanto quem cria as histórias.

Você nasceu e cresceu em Brasília. Como percebe a visão parcial que muitos brasileiros de outras paragens têm da cidade?
Brasília não é uma cidade, é um projeto de Brasil. Para a construção da cidade, foram mobilizadas pessoas de múltiplos lugares pela excelência do seu trabalho: Lucio Costa, Burle Marx, Mari Vieira, Oscar Niemeyer. Muitas experiências foram geradas em Brasília para serem multiplicadas em outros lugares do país. Claro que o país tem uma diversidade muito grande e essas singularidades precisam ser consideradas. Eu acho que se confunde, algumas vezes, as mazelas da política com Brasília. Inclusive, as pessoas se esquecem que os políticos representam as diversas regiões do país. Mas a cidade transcende muito essa dimensão. Brasília é uma obra de todos os brasileiros.

Que conselhos você daria para uma pessoa que quer desenhar?
Desenhe sem se preocupar em fazer algo bem. O importante é a expressão. Muitas vezes, o que se considera escrever bem é apenas algo formal e morto. Na expressão pode estar a originalidade, a força e a singularidade. É isso que importa mais do que o bem-feito ou o belo.